QUANDO O DESTINO SE ENCONTRA COM A CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO
A história que vou lhes contar é tão fantástica, que bem poderia estar nos livros de histórias infantis que a gente lê para as crianças dormirem. Com final feliz e tudo o mais. Mas acima de tudo, é uma história de dedicação, de esperança e de amor pela humanidade. De certa forma, é a história da própria humanidade.
O fato aconteceu no dia 13 de outubro de 2019, às 12h e 48min. Era um domingo. Um domingo de curso de Suporte Avançado de Vida (ACLS) na sede do Centro de Treinamento e Simulação de Emergências Médicas (CTSEM) em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Estávamos nos preparando para iniciar a fase de avaliações do curso, quando alguns colegas começaram a correr dentro do Centro. Logo, um passou levando um dos nossos desfibriladores e avisou que tinha uma pessoa “parada” do outro lado da rua.
Seu Renato* é um homem na sua quinta década de vida. Ele é um pintor muito competente, além de ser uma pessoa muito agradável e bem-humorada. Ele conta que estava indo para casa, quando resolveram, ele e a esposa, parar e comprar o almoço em uma churrascaria, que fica na frente do CTSEM. Nas palavras do Seu Renato, enquanto aguardava na fila, em pé, “o chão pareceu balançar” e, depois, ele só lembra quando acordou, ainda na calçada, com nossos instrutores lhe socorrendo.
Para a esposa do Seu Renato e para as pessoas que estavam ali, naquele momento, a cena toda é bem viva na memória. Ele caíra e, no solo, pareceu esboçar alguns movimentos convulsivos. O Serviço Médico de Emergência (SAMU) fora acionado para uma possível convulsão. Mas, de dentro da Sede do CTSEM, um dos alunos, observando o burburinho, notou o braço hipotônico da vítima e percebeu a possiblidade de algo mais grave do que uma crise convulsiva. Com a cena segura e a parada cardiorrespiratória reconhecida, as manobras de ressuscitação efetivas foram iniciadas imediatamente. Dois choques de desfibrilação foram suficientes para trazer de volta o coração do Seu Renato a um ritmo normal. E o seu Renato voltou falando. Parece muita sorte, mas não é; somos todos nós estudando, pesquisando e ensinando há pouco mais de meio século.
A história do Seu Renato começa muito antes. É a história de toda humanidade, de todos os nossos esforços para vencer a morte. Talvez o marco mais consistente seja a publicação de Kouwenhoven em 1960, quando os autores descreveram a técnica de compressão torácica externa para manter a perfusão do cérebro e do coração enquanto o desfibrilador externo vai sendo preparado. Wiliam Kouwenhoven e Guy Knickerbocker não eram médicos. Ambos eram engenheiros elétricos. Kouwenhoven, o pioneiro, era conhecido por ser muito disposto, trabalhador e estudioso, mas, nas palavras do seu aluno, Knickerbocker, o apelido de “Wild Bill” fazia sentido para aquele descendente de holandeses totalmente decidido a desenvolver o primeiro desfibrilador externo portátil na história. Mas o apelido de “selvagem” não era exatamente pelo seu envolvimento com o aparelho e nem pela sua competitividade; era pelo seu nível de exigência como professor. E, aqui, passamos da história, pela ciência, pela tecnologia e entramos na educação.
Assim que a descoberta do desfibrilador externo manual e as técnicas de ressuscitação cardiopulmonar foram publicadas, a American Heart Association (AHA) iniciou um respeitável trabalho de educação e treinamento para disseminar a frase famosa do Dr. Knickerbocker: “nós só precisamos de duas mãos.” O programa, que inicialmente era exclusivo para médicos, logo se transformou no maior programa de educação em saúde do mundo. Dessa forma, a estratégia de comprimir o tórax, enquanto se aguarda a chegada do desfibrilador, saiu da Johns Hopkins em Baltimore há 60 anos e chegou até o coração do Seu Renato, em Porto Alegre.
Essa é uma história fantástica, mas não é fantástica pela sorte do Seu Renato. Não foi o acaso que colocou esse senhor, naquele dia, na frente do CTSEM. É exatamente o contrário. Foi um professor exigente, um “selvagem” determinado a aplicar os seus estudos de engenharia elétrica no desenvolvimento do desfibrilador portátil. Foi a fraternidade da American Heart Association, que disseminou mundo afora as técnicas para ressuscitar um ser humano. Foi a vitória da odisseia humana contra o acaso. E seremos todos nós, que nos levantaremos determinados, toda vez, que alguém disser: “tem uma pessoa parada lá!”
*O nome foi alterado para preservar a identidade.