A CLÍNICA MÉDICA NOS TEMPOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Nas últimas décadas, o desenvolvimento e a comercialização de novas tecnologias para examinar os pacientes é impressionante. O profissional médico dispõe atualmente de tecnologias para serem utilizadas à beira do leito (POCUS, FAST, troponina ultrassensível) e de aparelhos sofisticados para serem utilizados com o deslocamento do doente até as instalações do departamento de imagem (tomografia, ressonância magnética, angiotomografia, angioressonância). Todos esses recursos possuem uma acurácia superior ao exame físico para detectar aquilo que se
propõe. É fácil supor que o tempo destinado ao estudo do exame físico, ao treinamento para examinar e ao próprio exame físico do paciente à beira do leito foi, é e será tempo perdido. Tempo inútil. Tempo a ser substituído pela velocidade e precisão espantosas da tecnologia. Como se já tivéssemos chegado ao fantástico mundo de ficção científica, quando o profissional poderia examinar todo o paciente em segundos usando um transdutor de bolso. Talvez seja mesmo assim. Talvez a inteligência artificial, ou melhor, a Inteligência Artificial - aliada a todo esse aparato de recursos tecnológicos - seja realmente o que os nossos pacientes precisam. Talvez a razão demonstre o contrário.
O primeiro argumento é matemático. Todo exame – seja ele o exame tradicional executado com os sentidos do profissional ou o exame complementar tecnológico – todos eles tem sensibilidade e especificidade menores que 100%. Não existe tecnologia perfeita. Todo exame tem resultados falso positivo e falso negativo. Assim sendo, a probabilidade pós-teste da mais sofisticada tecnologia ao ser utilizada para um determinado diagnóstico depende, segundo o teorema de Bayes, também, da probabilidade pré-teste daquele diagnóstico. Simplificando de forma caricata: se escutamos o som de uma tropa galopando, o diagnóstico mais provável é de cavalos, entretanto, se estivermos na África, a probabilidade de dar “zebra” nesse diagnóstico é razoável. A técnica tradicional de escutar, examinar e interpretar tem a propriedade de aumentar ou diminuir a probabilidade pré-teste dos diagnósticos. Um exemplo prático: jovem, masculino, 34 anos, procura a emergência com dor torácica e dispneia iniciadas subitamente há menos de uma hora. O protocolo prioriza o eletrocardiograma. O eletrocardiograma demonstra supradesnivelamento do segmento ST de 1,5 mm em duas derivações contíguas, V2 e V3. A verdade diagnóstica desse jovem, entretanto, é um pneumotórax espontâneo. Uma alteração facilmente detectada pelo exame cuidadoso dos sons pulmonares e pela técnica rudimentar da percussão. Clínicos experientes sabem que, em V2 e em V3, os homens com menos de 40 anos podem apresentar um supradesnivelamento do segmento ST de até 2,5 mm (0,25 mV) sem que haja oclusão aguda de artéria coronária. O método clínico tradicional poderia reduzir a probabilidade de infarto a um número próximo de zero, mesmo sem o conhecimento do “padrão masculino” no eletrocardiograma. Retornando à figura de zebras e cavalos, o fato de não haver murmúrio vesicular e o som estar hiper ressonante naquele hemitórax nos conduz a nossa região em termos de prevalência pré-teste e torna a possibilidade do som da tropa ser causado por zebras próxima de zero. Biologicamente falando: zero.
O próximo argumento está relacionado com o fato de atendermos emergências, ou seja, situações que necessitam de reconhecimento e ação imediatos. A técnica tradicional ainda é insuperável, quando as decisões precisam ser tomadas em questão de segundos ou de minutos. Provavelmente uma “angiotomo” ou uma angioressonância serão exames definitivos para o diagnóstico de situação tão grave, quanto uma dissecção de aorta. O dilema se apresenta, quando precisamos decidir se encaminhamos um paciente com dor torácica para o departamento de imagem ou se iniciamos o tratamento para Síndrome Coronariana Aguda (SCA). Essa decisão parece simples, mas o tratamento para SCA, além de ser uma corrida contra o tempo, pode ser, também, prejudicial – até fatal! – para um paciente com dissecação de aorta. Isso é tão verdadeiro que as Diretrizes de manejo de SCA recomendam descartar clinicamente o diagnóstico de dissecção antes de tratar para infarto do miocárdio. Aqui, novamente, o método tradicional de escutar, examinar e interpretar se impõe: como é a dor? Para onde se irradia? E os pulsos radiais e femorais, como estão? A pressão arterial foi aferida nos dois braços? O paciente está disfônico? É o exame físico tradicional demostrando toda a sua importância no apoio à melhor decisão do clínico. Mesmo com todos os recursos tecnológicos disponíveis.
Do ponto de vista técnico, os argumentos colocados já são suficientes para o reconhecimento de que o profissional médico - escutando, examinando e interpretando - ainda é imprescindível no momento de decidir o que é melhor para o doente. Além disso, existem duas áreas em que o método tradicional não será substituído tão cedo pela tecnologia: a pediatria – essencialmente semiológica – e a psiquiatria, literalmente inacessível ao arsenal tecnológico de diagnóstico. Mas a medicina não é apenas técnica. O método clínico tradicional continuará sendo sempre o pilar da nossa profissão, porque o pilar da nossa profissão é a relação médico paciente e a relação médico paciente se estabelece na entrevista e, também, no exame físico. Nos olhos, que observam. Nas mãos que tocam. E no estetoscópio que vai lá auscultando os “tum-tac” dos nossos corações. Esses “tum-tac”, cheios de significados, que estão ali esperando para serem decifrados, são uma das principais justificativas para ainda sermos profissionais necessários e úteis aos doentes.
Há muitos anos, a medicina natural se separou da medicina sacerdotal. Houve uma época em que os médicos não precisavam – ou nem sabiam – examinar os doentes. Eram tempos de certezas, não havia necessidade de entrevistar ou de tocar nos doentes. Foram os tempos do sobrenatural. Tempos das culpas, dos pecados, das intuições e das adivinhações. Tempos em que os doentes não eram examinados. Um certo profissional, conhecido no ocidente por Rhazes (século IX e X), começou a duvidar daquelas certezas e a aceitar as próprias dúvidas. Começou a palpar o abdome e verificar a temperatura com o dorso da mão. Começou a “perder tempo” com a entrevista e com o exame físico. Esse nobre colega deu início a nossa profissão embasada na razão. Seu consultório? Seu consultório se esvaziou: “o doutor não é mais aquele, precisa ficar examinando!”. Esse episódio tão paradoxal, quanto ilustrativo da história da profissão dos clínicos está esteticamente narrado no livro “A Paixão Transformada – história da medicina na literatura” de autoria do Dr. Moacyr Scliar, médico e escritor.
Estamos caminhando de volta ao mundo em que se procura a verdade longe do ser humano. A tecnologia é útil. Muito útil, mas não é divina. Nunca será. O tempo gasto com os livros, com os professores e com os pacientes para aprendermos a examinar, a auscultar, aprendermos a conversar, nunca será um tempo inútil. O médico, que vive a ilusão de que a tecnologia resolverá todos os seus dilemas, não entendeu nada sobre o que é a verdadeira klínica médica.