A técnica para posicionar um tubo dentro traquéia, certificar a profundidade correta, inflar o cuff, confirmar o posicionamento e fixar de forma confiável em situações de trauma, que apresentem risco de lesão da coluna cervical, é um desafio para o profissional médico.(1) Primeiro, naturalmente, o profissional precisa ser treinado na técnica convencional de laringoscopia direta e precisa desenvolver a habilidade de intubar em situações não traumáticas. A via aérea no trauma com suspeita de lesão cervical é uma via aérea difícil. Essa definição condiciona praticamente todas as particularidades que iremos comentar a seguir (figura 1).
Antes de discorrer sobre o procedimento da intubação no trauma, é necessário comentar sobre os possíveis cenários. Tradicionalmente as intubações são executadas por médicos anestesiologistas no ambiente do bloco cirúrgico. Os intensivistas frequentemente intubam os pacientes que internam nas Unidades de Tratamento Intensivo. Profissionais, que atendem vítimas de trauma grave, podem estar no ambiente da Sala de Emergência e podem estar na cena do trauma. Os profissionais do Serviço Médico de Emergência (SME) vão até a cena. Avaliam o paciente e, se houver indicação, garantem uma via aérea definitiva, que poderá ser o tubo endotraqueal (TET) conforme descrito inicialmente. As outras opções serão discutidas no final desse texto. Aqui começam as particularidades relacionadas com a intubação no trauma. A cena pode ser de um adulto inconsciente sobre o telhado de uma casa, pode ser uma vítima de acidente automobilístico presa nas ferragens de um automóvel, pode ser na calçada em um dia de chuva intensa. Todos esses cenários – e muitos outros – aumentam a complexidade desse procedimento para os profissionais envolvidos. Além de precisar ser intubada deitada sobre o telhado ou na calçada, a vítima de trauma frequentemente está com o estômago cheio, tendo em vista o caráter súbito e inesperado dos eventos traumáticos. Fato que implica um risco maior de aspiração de conteúdo gástrico. Lembrando que as vítimas de Traumatismo Cranioencefálico (TCE) grave, ou seja, com o escore da Escala de Coma de Glasgow igual ou menor do que 8, aquelas que não preservam os reflexos de proteção das suas via aéreas, constituem um grupo com indicação formal de via aérea definitiva. Além disso, é importante lembrar que as vítimas de TCE, em função da cinemática do trauma, também apresentam um risco aumentado de lesão na coluna cervical e que essa lesão pode ser na sexta vértebra cervical, justamente, onde iria se apoiar o anel posterior da cricóide na tentativa de ocluir o esôfago para impedir a regurgitação com a manobra de Sellick. Ou seja: a intubação no cenário do trauma, principalmente em nível extra hospitalar, é um desafio para a equipe e, especialmente, para o profissional médico. Considerando o que já foi exposto, é fácil compreender que a intubação endotraqueal no trauma somente deve ser realizada por um profissional médico adequadamente treinado e experiente no procedimento convencional.
Em algumas situações, equipe sem experiência com intubação, paciente sem risco de morte iminente e com estimativa de tempo curto para o deslocamento até um hospital de trauma, pode ser mais prudente comunicar por rádio a equipe de Regulação e se deslocar sem a intubação.(2) Entretanto, por exemplo, havendo a necessidade de uso de aeronave, provavelmente dever-se-ia intubar a vítima, enquanto as equipes de transporte completam as operações de segurança necessárias para o voo. Outra questão relevante é o uso de medicações para auxiliar na intubação. Na clínica hospitalar, a Sequência Rápida de Intubação (SRI) para um paciente que não fez o desejado NPO de 6h, é um procedimento que auxilia o médico operador experiente e, de certa forma, protege o paciente. No trauma é diferente. Primeiro, não são pacientes; são vítimas. Segundo, como enfatizamos no início, via aérea de vítima de trauma é via aérea difícil por definição. Sendo assim, a SRI tornase muito arriscada. A equipe pode ficar na situação de “não consigo intubar, não consigo ventilar”. Entretanto, o profissional precisa considerar os casos de vítimas de TCE grave. Provavelmente, se houver sinais de hipertensão intracraniana, o uso cuidadoso dos sedativos e do curare, bem como, da lidocaína IV podem ser úteis no sentido de minimizar o risco de herniação encefálica. Em relação ao procedimento no trauma, em primeiro lugar, todo o equipamento para o manejo de via aérea no extra hospitalar deve vir funcional e deve estar bem organizado em uma bolsa exclusiva. Deve haver sistemas de aspiração manual ou alimentado por bateria. E eles devem estar funcionantes.
O ideal é que o oxigênio seja disponibilizado junto na bolsa e que, nesse caso, o cilindro seja de alumínio para reduzir o peso. Os equipamentos de biossegurança, claro, precisam estar disponíveis e devem ser usados. Luvas e óculos de proteção. Esse é um procedimento para ser realizado por uma equipe com três profissionais. O profissional médico atrás da cabeça da vítima, podendo estar sentado ou, até mesmo, deitado. O profissional da direita, uma enfermeira com experiência ou uma profissional técnica de enfermagem com treinamento e, à esquerda, o profissional que irá auxiliar na contenção do paciente, mantendo as duas mãos firmes no pescoço e na cabeça e os antebraços - até os cotovelos - apoiados para, dessa forma, impedir a movimentação da cabeça e do tórax, procurando manter o alinhamento neutro da coluna cervical. O profissional auxiliar da direita do médico pode adotar uma posição descrita como “três apoios”, joelho e pé e outro pé apoiados no chãos, que oferece um pouco mais de estabilidade.
Note-se que, nestes casos, não se utiliza a posição do farejador (sniff position) para a cabeça da vítima. Todos posicionados, material preparado de forma convencional, abre-se o colar cervical e o auxiliar da esquerda passa a controlar a movimentação da vítima. O profissional médico pode usar a técnica bimanual de laringoscopar para aumentar a probabilidade enxergar as cordas vocais. Uma vez passado o TET pelas cordas vocais, o operador mantém a lâmina do laringoscópio posicionada e o auxiliar da direita, segurando firme o tubo, começa a tracionar o fio guia (estilete). O tubo deve ficar com o número 22 na altura dos incisivos superiores. Em adultos, a profundidade pode variar de 19 a 23 cm. Em crianças e bebês, a profundidade é de três vezes o diâmetro interno do TET, usando como referência o lábio. Nesse momento, o auxiliar da direita deve inflar o cuff com 5-10 de ar. O operador segura firme o tubo e a equipe inicia os procedimentos de checagem da posição. Se houver capnógrafo, ele deve ser acoplado ao sistema de ventilação neste momento, ou seja, antes de iniciar as ventilações de confirmação clínica. A bolsa de ventilação, com a válvula limitadora de pressão aberta e o reservatório de oxigênio cheio, deve ser conectada. O estetoscópio posicionado no epigástrio e toda a equipe olhando atentamente para o tórax. Uma ventilação, se silêncio no epigástrio, ausculta-se a axila esquerda e a direita e, se o capnógrafo confirmar a presença de CO2, a equipe pode fixar o tubo, recolocar o colar cervical e executar todos os procedimento de restrição de movimento da coluna cervical, que serão muito importantes, também, para diminuir as chances de deslocamento do tubo e, nos casos de TCE, para minimizar a movimentação do tubo e a estimulação da traqueia, que podem causar agitação e aumento da pressão intracraniana. A equipe deve, dentro do razoável, documentar todo o procedimento, especialmente os resultados da capnografia. Se, depois de 30 segundos, contados em voz alta pelo socorrista da esquerda do médico operador, não for possível passar o tubo com segurança, é importante parar e ventilar a vítima novamente com bolsa-máscara e reservatório cheio de oxigênio. As alternativas sugeridas são: tentar novamente a intubação com a técnica orotraqueal.
Outra alternativa simples é utilizar o bougie, um fio guia elástico com uma pequena curvatura na sua extremidade de introdução (distal), que facilita o acesso à glote, mesmo nassituações mais difíceis. No ambiente de trauma, sugere-se passar o bougie sob visualização direta, confirmar os cliques dos anéis traqueais anteriores e, enquanto o médico operador segura a lâmina do laringoscópio em posição, o auxiliar da direita, segurando firme o fio guia, avança o TET sobre ele. A lâmina do laringoscópio posicionada facilita o avanço do tubo. Mesmo assim, algumas vezes o tubo “encrava” nas cartilagens aritenóides, na parte inferior da glote. O procedimento indicado é executado pelo auxiliar: ele traciona um pouco o tubo e gira-o 90° em sentido anti-horário.(3) Esse truque simples coloca o bisel do TET para baixo e facilita o deslizamento sobre a parte inferior da glote para dentro da traquéia.
Outras alternativas mais recentes são: primeiro, o tubo laríngeo, que pode ser a solução definitiva ou o tubo laríngeo com recurso de intubação, quando o profissional passa o tubo laríngeo às cegas e, depois, consegue intubar através do próprio tubo laríngeo. Segundo, as máscaras laríngeas, que permitem ventilar as vítimas, mas que não oferecem a proteção adequada da via aérea. Modernamente, existem modelos de máscaras laríngeas que servem de guia para o TET, tal qual o tubos laríngeos.
Profissionais médicos adequadamente treinados podem realizar a cricotireoidotomia de emergência. É uma alternativa muito necessária na cena do trauma. Algumas vezes, é a única forma de acessar a via aérea, oxigenar e ventilar a vítima de trauma. É um procedimento simples, rápido, mas exige equipamento adequado e habilidade psicomotora. Em situações de emergências extremas em crianças, o profissional médico pode realizar uma cricotireoidotomia por punção (com agulha), que permitirá a oxigenação da criança por alguns minutos. Alguns médicos optam pela intubação endotraqueal utilizando a técnica nasotraqueal. O principal argumento a favor seria a hipotética menor necessidade de mobilização cervical. Entretanto, a vítima não pode ter nenhuma evidência de fratura de ossos da base do crânio. Como por exemplo: rinorréia liquórica, sinal do guaxinim, sinal de Battle, líquor no meato acústico, otorragia e hemotímpano. A vítima, também, não pode estar tomando anticoagulante. Todas essas informações são complicadas de se obter na cena do trauma. O sinal de guaxinim pode ainda não ter aparecido. O líquor escorrendo do nariz ou do ouvido pode facilmente passar despercebido no escuro ou na chuva. Além do que, para o clínico executar a intubação nasotraqueal, é importante enfatizar, o doente precisa estar ventilando espontaneamente. Então, essa opção fica como uma última alternativa para um paciente com trismo, por exemplo. Como a proposta inicial é a intubação no cenário do trauma, é necessário citar duas técnicas muito pouco usadas no nosso meio, mas que tem sua indicação própria em algumas cenas de trauma.
A primeira delas é a intubação face a face. Quando a vítima se encontra presa nas ferragens de um automóvel, por exemplo, e as equipes ainda não conseguiram liberar um acesso adequado para o médico se posicionar e intubar. Uma alternativa é a técnica de intubar pela frente, com o cabo do laringoscópio seguro na mão direita e o TET na mão esquerda. A técnica de intubação face a face também é conhecida como técnica Tomahawk (machadinha) e é relativamente simples de executar. A última técnica a ser comentada, que não é tão simples de executar, mas que pode ser muito útil em situação com luminosidade excessiva, como uma parada cardíaca por afogamento (quase afogamento) na praia ao meio-dia. Curiosamente, nesse cenário, a luz dos laringoscópios convencionais não funciona. Existem algumas opção. Uma e tentar escurecer o ambiente cobrindo com uma lona, por exemplo. Outra, se disponível, seria utilizar equipamentos extra glóticos para o manejo das vias aéreas, como já citados acima. E outra alternativa é a intubação digital.
Obviamente, a vítima precisa estar totalmente inconsciente. O operador prepara a curvatura de dois tubos (um reserva, pois o calor do corpo pode desfazer a curvatura) com antecedência e procede utilizando os dedos médio para elevar a epiglote e indicador para direcionar o tubo para dentro da glote. Ou seja, a vítima é intubada sem o auxílio da luz do laringoscópio, diretamente com os dedos (técnica digital) da mão do operador. Essa foi uma visão panorâmica da intubação endotraqueal em situações de trauma. Esse é um desafio para os profissionais médicos e para a equipe que atua com esses colegas.
1. Trauma ACoSCo. ATLS® : advanced trauma life support student course manual: American College of Surgeons; 2018. 2. TECHNICIANS NAOFEM. PHTLS 9E: Prehospital Trauma Life Support: Jones & Bartlett Learning, LLC; 2019. 3. Steven Orebaugh JVS. Direct laryngoscopy and endotracheal intubation in adults. In: Jonathan Grayzel MC, editor. UpToDate2020