Em artigo original publicado recentemente no “New England Journal of Medicine”, Dr. Sheldon Cheskes e colaboradores demonstraram a superioridade de duas estratégias alternativas de desfibrilação para pacientes adultos com fibrilação ventricular (FV) refratária ao terceiro choque convencional.(1) O editorial, de autoria daDra.Comilla Sasson e do Dr. Jason Haukoos, questiona: “Será a hora de mudar a prática?”(2)
O manejo da fibrilação ventricular refratária ao terceiro choque é um desafio para os profissionais da linha de frente. Esse estudo foi desenhado para avaliar a desfibrilação externa de sequência dupla (DSED, da expressão em inglês, “Double Sequential External Defibrillation”) como estratégia para aumentar a probabilidade de sucesso em pacientes com parada cardiorrespiratória (PCR) por ritmo chocável refratário em ambiente extra hospitalar, quando comparada com a técnica convencional. Para estimar essa possibilidade, o estudo alocou pacientes em três grupos (conforme a estratégia analisada) definidos ao acaso e pela intenção de tratar: grupo convencional, grupo DSED e grupo de desfibrilação por mudança de vetor (“Vector-Change defibrillation”). Operacionalmente, a estratégia DSED necessita de dois desfibriladores com seus eletrodos adesivos posicionados anterolateral e anteroposterior, sendo os choque aplicados em sequência. A estratégia de desfibrilação por mudança de vetor não necessita de dois desfibriladores, mas, também, utiliza dois jogos de eletrodos adesivos, conforme o vídeo descritivo produzido pelos autores. Nesse caso, constatada a refratariedade, os operadores reposicionam os eletrodos de anterolateral para anteroposterior. Além disso, os autores utilizaram o “crossover” entre as equipes para permitir uma melhor comparação entre as estratégias em análise.
A PCR em ritmo chocável é uma situação relativamente frequente e vulnerável à ressuscitação cardiopulmonar (RCP) imediata e de boa qualidade associada ao choque de desfibrilação aplicado o mais precoce possível. No cenário extra hospitalar, estima-se em torno de 50 casos de PCR por 100.000 habitantes por ano.(3) Desse total, pelo menos 25% são casos de PCR por ritmo chocável. AFV e a desfibrilação são fenômenos elétricos interessantes. Por um lado, o choque fraco pode induzir uma FV, por outro, o choque forte é capaz de reverter a fibrilação. Essa é a origem da expressão “counter-shock”, o contra-choque desfibrilatório dos pesquisadores pioneiros nos Estados Unidos. Em 1926, o engenheiro elétrico,William Kouwenhoven, desenvolveu o primeiro desfibrilador que seria mais tarde utilizado em um ser humano.(4)Duas décadas depois, em 1947, Dr. Claude Beck, o mesmo da Tríade de Beck, desfibrilou um menino de 14 anos com corrente elétrica alternada aplicada diretamente no coração durante o trans operatório. Foi a primeira desfibrilação bem sucedida em humanos registrada na história. Durante a década de 60, a forma ideal de administração da energia elétrica passou a ser a corrente contínua (DC, “Direct Current”). Curiosamente, 45 anos depois, por volta de 2005, a ciência demonstrou que os novos desfibriladores bifásicos (que alternam o sentido do fluxo dos elétrons) conseguiam atingir a mesma efetividade com energias mais baixas. Mudanças relevantes aconteceram naquele ano. Os desfibriladores monofásicos pararam de ser fabricados e os algoritmos de atendimento da PCR, também, foram adaptados à realidade do choque bifásico. Desde então, ficou mais evidente que o assunto depende de muitas variáveis e esse é o maior desafio para a ciência contemporânea em relação à terapia elétrica: controlar as múltiplas variáveis envolvidas.
Os autores do estudo defendema DSED como estratégia para aumentar a probabilidade de sucesso em pacientes com PCR por ritmo chocável refratário em ambiente extra hospitalar. Além disso, descrevem uma maior chance de desfecho neurológico favorável na alta hospitalar para as vítimas de PCR atendidas com essa proposta. Entretanto os próprios autores abrem a discussão observando a baixa probabilidade de haver dois desfibriladores disponíveis para a execução da DSED no ambiente extra-hospitalar. Colocam, como sugestão, a técnica alternativa de desfibrilar mudando o vetor (“Vector-Change defibrillation”), que não mostrou a mesma efetividade da DSED. Além disso, em que pese o fato dos autores terem controlado variáveis relevantes como, por exemplo, o tempo para a primeira desfibrilação e o desfecho neurológico na alta hospitalar, a energia utilizada nos dois grupos de intervenção e no grupo controle não é reportada. Não fica claro se os choques aplicados no grupo controle foram de mesma intensidade ou se foram de intensidade progressivamente escalonada. É possível que choques com maior energia (maior densidade de corrente) apresentem uma probabilidade maior de reverter com sucesso a FV.(5-7) Choques com energia menor, choques fixos em 200J, colocariam o grupo controle em desvantagem, quando comparado com o choque duplo da estratégia sequencial. Nesse sentido, desde 2005, alguns fabricantes de desfibriladores optaram por disponibilizar choques bifásicos com formato de onda exponencial truncado de até 360J, como nos antigos monofásicos. Exatamente por esse motivo, o painel do desfibrilador bifásico na imagem contempla a possibilidade de aplicar choques com energias maiores que 200J. Além disso, os autores argumentam que a orientação anteroposterior dos eletrodos adesivos poderia aumentar a densidade de corrente fluindo pela massa miocárdica do VE, estrutura anatomicamente mais posterior e, portanto, mais afastada do fluxo de corrente gerado entre as pás anterolaterais. Contudo, ao observar a ilustração, que descreve o posicionamento dos eletrodos anterolaterais, fornecida no próprio artigo, é possível observar que o eletrodo lateral (Apex) não está posicionado conforme as orientações da “American Heart Association” (AHA) desde 1992,(8) ou seja, “à esquerda do mamilo e com o centro do eletrodo na linha axilar média”. Esse posicionamento foi descrito justamente para aumentar a probalidade da densidade de corrente fluir por todo o miocárdio, quando se usa a disposição anterolateral e tem sido observado nas diretrizes do “European Resuscitation Council” a partir de 2001.(9, 10). Dessa forma, novamente, o grupo controle fica em desvantagem.Observe-se que o último consenso em “Basic Life Support” da “International Liaison Committee on Resuscitation” (ILCOR), publicado em 6 de novembro de 2022 na “Circulation”, enfatiza,para vítimas do sexo feminino com mamas volumosas, a necessidade de evitar o tecido mamário deslocando o eletrodo para uma posição inferior ou lateral à mama.(11)
Os dois autores do editorial comentam sobre as dificuldades criadas pelo advento da Covid-19. O número previsto no cálculo amostral ficou reduzido a menos da metade, sendo que os autores do estudo optaram por incluir 152 casos do estudo piloto, o que potencialmente compromete a validade do ensaio. Além disso, embora os autores tenham contemplado variáveis importantes do ponto de vista clínico, outras não foram reportadas como, por exemplo, intervenção coronariana percutânea e controle direcionado de temperatura. Naturalmente, essas informações relacionadas aos cuidados pós retorno da circulação espontânea estão intimamente relacionados com o desfecho reportado.
Assim sendo, em relação à tomada de decisão prática no nosso meio, levando em consideração o custo adicional de um desfibrilador e de dois jogos de eletrodos adesivos (descartáveis), o presente estudo contribui com alguns resultados estatísticos consistentes favorecendo a DSED em relação à desfibrilação convencional para pacientes com PCR por ritmo chocável refratário no ambiente extra-hospitalar, entretanto, no momento, não há dados suficientes para justificar uma recomendação diferente daquela que a AHA tem expressado nas suas diretrizes. Os dados, por outro lado, parecem favorecer o uso de energias bifásicas mais altas nesse cenário específico.
1. Cheskes S, Verbeek PR, Drennan IR, McLeod SL, Turner L, Pinto R, et al. Defibrillation Strategies for Refractory Ventricular Fibrillation. The New England journal of medicine. 2022.
2. Sasson C, Haukoos J. Defibrillation after Cardiac Arrest - Is It Time to Change Practice? The New England journal of medicine. 2022.
3. Gräsner JT, Herlitz J, Tjelmeland IBM, Wnent J, Masterson S, Lilja G, et al. European Resuscitation Council Guidelines 2021: Epidemiology of cardiac arrest in Europe. Resuscitation. 2021;161:61-79.
4. Acosta P, Varon J, Sternbach GL, Baskett P. Kouwenhoven, Jude and Knickerbocker: The introduction of defibrillation and external chest compressions into modern resuscitation. Resuscitation. 2005;64(2):139-43.
5. Link MS, Atkins DL, Passman RS, Halperin HR, Samson RA, White RD, et al. Part 6: Electrical Therapies. Circulation. 2010;122(18_suppl_3):S706-S19.
6. Berg KM, Soar J, Andersen LW, Böttiger BW, Cacciola S, Callaway CW, et al. Adult Advanced Life Support: 2020 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science With Treatment Recommendations. Circulation. 2020;142(16_suppl_1):S92-s139.
7. Panchal AR, Bartos JA, Cabañas JG, Donnino MW, Drennan IR, Hirsch KG, et al. Part 3: Adult Basic and Advanced Life Support: 2020 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Circulation. 2020;142(16_suppl_2):S366-S468.
8. Adult Advanced Cardiac Life Support. JAMA. 1992;268(16):2199-241.
9. Heames RM, Sado D, Deakin CD. Do doctors position defibrillation paddles correctly? Observational study. BMJ (Clinical research ed). 2001;322(7299):1393-4.
10. Deakin CD, Sado DM, Petley GW, Clewlow F. Is the orientation of the apical defibrillation paddle of importance during manual external defibrillation? Resuscitation. 2003;56(1):15-8.
11. Wyckoff MH, Greif R, Morley PT, Ng K-C, Olasveengen TM, Singletary EM, et al. 2022 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science With Treatment Recommendations: Summary From the Basic Life Support; Advanced Life Support; Pediatric Life Support; Neonatal Life Support; Education, Implementation, and Teams; and First Aid Task Forces. Circulation.